quarta-feira, 26 de setembro de 2012

VERBO SER


VERBO SER

Que vai ser quando crescer?
Vivem perguntando em redor. Que é ser?
É ter um corpo, um jeito, um nome?
Tenho os três. E sou?
Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito?
Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É terrível, ser? Dói? É bom? É triste?
Ser; pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas?
Repito: Ser, Ser, Ser. 
Que vou ser quando crescer?
Sou obrigado a? Posso escolher?
Não dá para entender. Não vou ser.
Vou crescer assim mesmo.
Sem ser Esquecer.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 16 de setembro de 2012

Morreu a velhinha


Morreu a velhinha


"The lacemaker”, de Johannes Vermeer.Daqui. 

Morreu 3 dias depois de chegar aos 100 anos.
Parece que estava só esperando o centenário.
Da vida não teve muitos segredos:
Nasceu, cresceu, casou, teve filhos,
Aprendeu a ler e escrever o básico.
Ela nunca ouviu falar de Alberto Caieiro,
Mas concordaria com o heterônimo:
Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte.”

Ela não saía muito de casa:
Cresceu no mato, casou no mato,
Só depois virou urbana.
Na cidade, então pequena,
Era de casa para a venda;
Da venda para casa;
E aos domingos, missa.
Não viu muita coisa do mundo.
Não viu Getúlio Vargas,
Não viu a segunda guerra,
Já ouviu falar de Hitler,
Não conheceu Stálin, Mussolini,
Mas da bomba atômica ouviu falar
E acreditou em Deus Pai para a todos salvar. 
Não viu os hippies e nem o Vietnã;
Nunca soube quem eram os beats e os Beatles,
Rolling Stones e Jovem Guarda,
Mas gostava de algumas canções do Roberto Carlos;
Ouviu falar que o homem pisou na lua,
Mas nunca soube de Kennedy e Luther King.
Passou pela ditadura que nem se deu conta;
Viu que Tancredo Neves morreu,
E depois disso não sabe o que aconteceu;
Viu que um presidente jovem saiu,
E depois disso não sabe o que aconteceu,
Embora neste período tenha ficado mais pobre.
Ouviu falar que o mundo acabaria no ano 2000
E não viu o fim do mundo;
Viu uns edifícios arderem em chamas nos EUA,
Mas nunca soube direito o que aconteceu;
E nos últimos tempos assistia TV
Sem nada entender.

Mas ela viu muitas outras coisas.
Viu os filhos crescerem,
Os netos aparecerem,
A família prosperar.
Viu as plantas do jardim,
Ouviu o canto dos pássaros,
Agradeceu pela chuva,
Plantou na terra fértil,
Colheu o fruto de seu trabalho
E como viu que era bom, continuou.
Viu nascimentos e mortes,
Viu lamentos e felicidades,
Viu os animais de estimação,
Grandes alegrias.
Viu exames de saúde perfeita,
Poucas vezes no hospital esteve;
Viu milagres e falsidades,
Viu, sorriu, chorou, cozinhou, amou.
Sim, viu amores, sentiu amores.
E quase sem sair de casa,
Viu muita coisa a velhinha centenária.

E eu vi,
Ainda tão jovem
E sem precisar sair de casa:
A praça da Paz Celestial
A igreja da Candelária
De massacres e chacinas nada divinos;
O fim da União Soviética,
A queda do muro de Berlim,
A derrocada do comunismo,
A explosão do consumismo. 
A queda do mauricinho Fernando Collor;
A ascensão do intelectual Fernando Henrique;
A ascensão do operário Luís Inácio Lula;
Os holofotes na estagiária de Bill Clinton,
A liberdade de Nelson Mandela,
A morte de um Papa,
A escolha de um novo Papa,
A decodificação do genoma humano.
A seleção brasileira vencer Copas do Mundo;
O mapa-múndi diferente;
Golfo, Kosovo, Bósnia-Herzegovina, Chechênia, 
Saddam Hussein, Milosevic,George Bush, Bin Laden,
E o ataque às Torres Gêmeas.
A revolução da internet;
Tsunamis e terremotos devastadores;
Um negro no poder nos EUA;
A primeira mulher presidente do Brasil;
Um robô em Marte.

E
 sei que ainda vou ver muita coisa.
Muita coisa boa.
Muita coisa ruim.
Mas vi muito pouco.
Tomara que eu veja tanto
Quanto a simpática velhinha centenária
Viu durante sua vida.
E que possa partir igualmente de forma serena,
Com a tranquilidade de saber ter visto
O que era mais importante.  
O essencial é saber ver”.*

*“O guardador de rebanhos”, de Alberto Caieiro