domingo, 16 de setembro de 2012

Morreu a velhinha


Morreu a velhinha


"The lacemaker”, de Johannes Vermeer.Daqui. 

Morreu 3 dias depois de chegar aos 100 anos.
Parece que estava só esperando o centenário.
Da vida não teve muitos segredos:
Nasceu, cresceu, casou, teve filhos,
Aprendeu a ler e escrever o básico.
Ela nunca ouviu falar de Alberto Caieiro,
Mas concordaria com o heterônimo:
Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte.”

Ela não saía muito de casa:
Cresceu no mato, casou no mato,
Só depois virou urbana.
Na cidade, então pequena,
Era de casa para a venda;
Da venda para casa;
E aos domingos, missa.
Não viu muita coisa do mundo.
Não viu Getúlio Vargas,
Não viu a segunda guerra,
Já ouviu falar de Hitler,
Não conheceu Stálin, Mussolini,
Mas da bomba atômica ouviu falar
E acreditou em Deus Pai para a todos salvar. 
Não viu os hippies e nem o Vietnã;
Nunca soube quem eram os beats e os Beatles,
Rolling Stones e Jovem Guarda,
Mas gostava de algumas canções do Roberto Carlos;
Ouviu falar que o homem pisou na lua,
Mas nunca soube de Kennedy e Luther King.
Passou pela ditadura que nem se deu conta;
Viu que Tancredo Neves morreu,
E depois disso não sabe o que aconteceu;
Viu que um presidente jovem saiu,
E depois disso não sabe o que aconteceu,
Embora neste período tenha ficado mais pobre.
Ouviu falar que o mundo acabaria no ano 2000
E não viu o fim do mundo;
Viu uns edifícios arderem em chamas nos EUA,
Mas nunca soube direito o que aconteceu;
E nos últimos tempos assistia TV
Sem nada entender.

Mas ela viu muitas outras coisas.
Viu os filhos crescerem,
Os netos aparecerem,
A família prosperar.
Viu as plantas do jardim,
Ouviu o canto dos pássaros,
Agradeceu pela chuva,
Plantou na terra fértil,
Colheu o fruto de seu trabalho
E como viu que era bom, continuou.
Viu nascimentos e mortes,
Viu lamentos e felicidades,
Viu os animais de estimação,
Grandes alegrias.
Viu exames de saúde perfeita,
Poucas vezes no hospital esteve;
Viu milagres e falsidades,
Viu, sorriu, chorou, cozinhou, amou.
Sim, viu amores, sentiu amores.
E quase sem sair de casa,
Viu muita coisa a velhinha centenária.

E eu vi,
Ainda tão jovem
E sem precisar sair de casa:
A praça da Paz Celestial
A igreja da Candelária
De massacres e chacinas nada divinos;
O fim da União Soviética,
A queda do muro de Berlim,
A derrocada do comunismo,
A explosão do consumismo. 
A queda do mauricinho Fernando Collor;
A ascensão do intelectual Fernando Henrique;
A ascensão do operário Luís Inácio Lula;
Os holofotes na estagiária de Bill Clinton,
A liberdade de Nelson Mandela,
A morte de um Papa,
A escolha de um novo Papa,
A decodificação do genoma humano.
A seleção brasileira vencer Copas do Mundo;
O mapa-múndi diferente;
Golfo, Kosovo, Bósnia-Herzegovina, Chechênia, 
Saddam Hussein, Milosevic,George Bush, Bin Laden,
E o ataque às Torres Gêmeas.
A revolução da internet;
Tsunamis e terremotos devastadores;
Um negro no poder nos EUA;
A primeira mulher presidente do Brasil;
Um robô em Marte.

E
 sei que ainda vou ver muita coisa.
Muita coisa boa.
Muita coisa ruim.
Mas vi muito pouco.
Tomara que eu veja tanto
Quanto a simpática velhinha centenária
Viu durante sua vida.
E que possa partir igualmente de forma serena,
Com a tranquilidade de saber ter visto
O que era mais importante.  
O essencial é saber ver”.*

*“O guardador de rebanhos”, de Alberto Caieiro

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